domingo, 15 de fevereiro de 2009

Dissertação sobre a vida...

Companheiros e visitantes: nada me prende, senão a problemática da existência. 

Me refiro dessa maneira ao abismo que geralmente separa os pensamentos, as palavras e os atos das pessoas. Me refiro à descaracterização do indivíduo perante a sociedade. A desvalorização do íntimo perante o pré-estabelecido.

Me refiro ao fato de todas as pessoas terem sua própria visão do mundo, suas idiossincrasias e semi-óticas, provenientes das suas experiências, fruto do convívio social... no entanto isso não impede que todos ajam da mesmíssima maneira.

De onde vêm essas ordens externas? Me pergunto, pois, do alto dos meus 20 anos, enquanto fumo meu cigarro natural, muito melhor que esses outros feitos de veneno, agentes viciantes e propaganda, me passa pela cabeça: Onde foi que o homem perdeu a referência do seu próprio valor? Quando foi que ele deixou de ser ele mesmo para integrar-se à uma massa amorfa, não-pensante, mesquinha e absolutamente ingênua? Afinal, é manipulada, mas é por demais incômodo pensar nisso, ou é mais cômodo não pensar.

Então aí vem a sacada: onde o homem busca refúgio, se a sociedade não preza pela sua felicidade? Dentro de si mesmo. Ou melhor, dentro da sua concepção de mundo.

Antes de continuar vamos analisar a situação de forma bastante breve: Vivemos no liberalismo, onde cada um tem direito de fazer o que bem entender, de acreditar no que quiser, de ser quem quiser. Como forma de produção temos o capitalismo, que visa o acúmulo de capital, que por sua vez, visa o consumo.

Se traçarmos um paralelo entre um cubano e um americano, personificações das corretes ideológicas opostas, socialismo e capitalismo, veremos que ambos não estão satisfeitos: Toda pessoa que vive em cuba come. Sem mais ou menos. Todo mundo tem comida e todo mundo come só arroz e feijão. Nos Estados Unidos, uma variedade imensa de comida, produzida e importada em quantidades arrasadoras: De forma geral os Estados Unidos consomem 80% dos recursos naturais do mundo. E isso faz com que a liberdade proposta pelo liberalismo e tornada real pelo capitalismo se resuma em escolher o que consumir. É essa a liberdade que a sociedade conquistou, mesmo podendo escolher a forma de vida que quiser, a ideologia política que considerar melhor, a forma de vida que considerar adeqüada: Escolher entre as marcas A, B ou C. Consumir isso, aquilo, ou aquele outro. 

No Brasil a coisa é ainda pior: Existe tanta desigualdade, uma concentração de riquezas tão absurda no país mais rico do mundo, que o liberalismo será sempre utópico para nós. 

E tem mais: não existe desenvolvimento sustentável. O mundo não pode sustentar o nosso atual modo de vida e a China vem aí pra provar. Quando os caras resolverem tomar leite, vai faltar leite aqui. Por que eles pagam mais, e vai ser tudo exportado.

Retomando ao que me motivou a escrever esse post, o que me assusta é a conformidade em que vivemos, mesmo sendo, todos nós, vítimas, não de um sistema, mas de pessoas: Afinal, qualquer sistema é formado por pessoas, e enquanto um sujeito trabalha só pra viver, ganhando um salário mínimo que o coloca à margem de qualquer possibilidade de consumo, outro se sente superior por ganhar 10.000 reais por mês: o sujeito que está lá em cima ganha cifras inimagináveis por hora em cima deles todos, e ninguém reclama. Tá tudo certo, o mundo é assim.

Na minha opinião a classe mais manipulada é a classe média: o pobre não tem esperança de consumo, ele trabalha pra viver. O rico não precisa de motivo, o mundo está organizado de forma que ele não precise pensar, apenas consumir, afinal ele consome. A classe média não: o que move a classe média é a vontade de consumir, é o desejo de consumir, por que também não consome em comparação com o rico, mas se considera herdeira do seu modo de viver. É uma classe vendida: não busca conhecimento, valores, progresso humano. Busca o pouco consumo à que dispõem, por que é burra. Foi tornada burra.

No meio de tudo isso está o homem, o indivíduo. E o homem já não se vê assim, como um ser poderosíssimo, que mantém esse sistema: se vê como parte integrante do sistema, subjugado à vontade de algo que ele não compreende. Diz que Deus não existe, caso contrário o mundo seria outro; mas também não estende a mão pra ninguém. Não quer tornar o mundo outro. O mundo, tal qual se organizou, é responsabilidade dos outros, e a insatisfação que carrega é por culpa do mundo, tal qual está organizado. Um círculo vicioso onde a saída só encontra eco na mudança de mentalidade, na reposição do homem, de todos os homens, ao seu posto de modificador, influenciador, moldador do mundo. Posto esse que hoje pertence a quem tem poder econômico, e que pertenceu antigamente à quem tinha conhecimento.

Escrevo tudo isso para dizer o seguinte: Meu trabalho provavelmente será o de um formador de marcas. Meu trabalho será fazer você pensar que as instituições estão aí pro seu bem, quando elas na verdade estão aí pra beber o seu sangue, seu suor e suas lágrimas. Hoje temos tecnologia pra disseminar o conhecimento pelo mundo, o que faria a sociedade evoluir como nunca antes em qualquer período. Atlântida teria inveja. Mas pra onde a tecnologia está voltada? Pro consumo.

Então escrevo principalmente pra dizer que não existe mais possibilidade de revolução no mundo, a não ser no modo de pensar: Nem socialismo, nem capitalismo. Estamos no mesmo barco, e o mundo vai pra onde as pessoas remam. E as pessoas remam, estão sempre remando, comungando com um sistema que aponta na direção da selvageria. Somos todos inimigos, competidores, e a vida de cada um é o que importa.

Mas veja o erro clássico: De fato, a vida de cada um é o que importa! Cada um vê sentido na sua própria concepção de mundo, nada mais natural. Somos indivíduos únicos; queremos ser felizes e prósperos. Mas a selvageria, a competição, o desespero infindável de acumular-conhecimento-para-servir-melhor-o-sistema-para-ganhar-mais-dinheiro... bom, essas concepções foram impostas. E cabe à cada um de nós se livrar desse lixo todo, e aí, quem sabe, encontrar sentido na vida, dentro da sua própria visão. Não na dos outros.

Cabe a cada um a própria vida, portanto não se sinta mal caso você não se importe com nada do que aqui foi dito. É natural, muita gente espera que você pense exatamente assim. 

Mesmo assim, queria que você soubesse.


Líber

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Palito de Fósforo

“Se, como é infelizmente o caso de nossa época, a moral evangélica parece evaporada, a condição de seu renascimento não residiria nesta redescoberta de suas raízes naturais? Será que não quisemos, até agora, fazer cristãos onde não se tinha ainda conseguido fazer homens? O resultado não é dos mais brilhantes: não temos mais nem homens nem cristãos”.
Paul Eugène Charbonneau


Temos todos a convicção de que a escolha dos governantes seja algo de grande importância. Os nomes dos nossos partidos não dizem muito e sua ideologia diz menos ainda. E a biografia dos candidatos são, de modo geral, de desanimar. Como proceder?Houve tempo em que os governantes tinham contato direto com o Criador, que lhes transmitia as regras a serem impostas aos súditos. Hamurabi e Moisés foram alguns que se valeram desse contato direto. Coisa muito mais fácil do que isso de democracia, que o Churchil disse ser a pior forma de governo, mas ainda não haviam encontrado outra melhor. Democracy is the worst form of government, except for all those other forms that have been tried from time to time. O rei Henrique VIII, porém, colocou em dúvida a certeza de que os soberanos tivessem sangue azul, ao mandar decapitar em público suas incômodas esposas. E olhe o sangue vermelho escorrendo quando a cabeça da executada foi separada do corpo.Muitos filósofos têm chamado a atenção para um fato preocupante, que não surgiu ontem. Enquanto na primeira metade do século passado os intelectuais discutiam a respeito da natureza de Deus, neste século a questão não está em acreditar ou em não acreditar. O que predomina é uma indiferença, é o “tanto faz quanto tanto fez”. Para Hans Küng isso tem muito a ver com a crise de valores que permeia o mundo todo, pois “não existe ação moral, humana, incondicionalmente obrigatória, nem uma ética também incondicionalmente obrigatória, sem religião”.
O argumento é discutível, pois pode levar ao entendimento inverso: basta haver religião para que esses tais valores sejam observados. Basta verificar que um Estado comprometido com a religião, como Israel, teve no Líbano uma conduta que muitos equiparam à “limpeza étnica” pretendida pelo nazismo. Aliás, o próprio padre Küng arrola as atrocidades cometidas em nome do cristianismo ao longo da História, muitas delas voltadas contra os judeus. Quando Albert Einstein declarou que não acreditava em um Deus pessoal, pois seu Deus era de outra espécie, a cosmic God, caiu o céu sobre sua cabeça, pois já morava nos Estados Unidos, onde até mesmo os ateus confessos são obrigados a jurar sobre a Bíblia, quando vão depor em Juízo, ou a ler nas notas de dólares que in God we trust. Coisas da democracia capitalista, certamente. “Todos têm o direito de acreditar naquilo em que eu acredito”, como deve ter dito o W. Bush aos muçulmanos.Um dos que lhe caiu de santo porrete na cabeça do Einstein foi o conceituado Cardeal Fulton Sheen, autor de livros como A Vida de Cristo, que fez pilhéria: “acho que o Deus dele tem um s a mais”. Os cardeais norte-americanos, aliás, são mestres em comicidade, como se viu quando acobertaram um número inimaginável de colegas pedófilos, pois puni-los acabaria levando a Igreja à bancarrota, tais as indenizações que as famílias exigiriam em Juízo. Não é para rir?
Eu poderia citar o padre jesuíta e teólogo Teilhard de Chardin e sua irrespondível afirmação de que a religião deve acompanhar as descobertas científicas e rever os conceitos que ela havia formulado quando tais descobertas ainda não haviam sido feitas. Só uma criança acreditaria que Deus fazia bonecos de barro, disse ele, curto e grosso. Prefiro, porém, ficar com o outro padre, também teólogo, e ainda vivo. Hans Küng passou por maus bocados quando, a exemplo do nosso Leonardo Boff, resolveu dizer que seus superiores hierárquicos demonstram, por sua conduta, acreditar pouco em Jesus Cristo e sua mensagem de paz e tolerância. Não posso acreditar, diz ele, que Jesus, que advertiu os fariseus por causa da carga insuportável que estavam a lançar sobre os ombros das pessoas, declarasse hoje ser pecado mortal a utilização de todos os meios anticoncepcionais artificiais. Nem imaginar que Ele, que convidava para sua mesa justamente os que haviam falhado, proibisse para sempre o acesso à Sua mesa a todos os divorciados que voltassem a casar.
Quer mais? O padre Küng tampouco consegue supor que Jesus, que constantemente se fazia acompanhar de mulheres, que cuidavam de sua manutenção, e cujos apóstolos, com exceção de Paulo, eram todos casados e assim permaneceram durante seu ministério, proibisse hoje aos homens ordenados o casamento e proibisse a todas as mulheres a ordenação. O homem não tem papas na língua, se me permitem o trocadilho.Na célebre pintura feita por Michelângelo Buonarrotti na Capela Sistina, por determinação de seu carrasco, o papa Júlio II, Deus veste um camisolão, tem barba e cabelos brancos e toca seu indicador no indicador do primeiro homem, feito de barro, como sabemos. Considerando que o papa era um tirano, que havia escravizado o artista até que este erigisse na praça São Pedro uma tumba faraônica que lembrasse para sempre o nome daquele Sumo Pontífice, torna-se claro que aquela figura antropomórfica contava com o apoio papal. Além de antropomórfica (isto é, Deus tem cabeça, tronco e membros, como se fosse humano), a figura de Deus ainda é, para muitos, antropopática, isto é, sente, pensa e age como se fosse humano.
Küng, homenageando nossa inteligência, nos adverte que, em realidade, é impossível falarmos de uma entidade tão superior, a não ser utilizando nossa linguagem humana. “Desse Deus e a esse Deus nós, certamente, só poderemos falar utilizando conceitos, imagens e idéias figuradas, códigos e símbolos.” É ele o Deus bíblico, “que pode ser percebido sob uma nova visão do mundo, segundo Copérnico, Galileu e Darwin”. Quem diria? Fico aqui a imaginar o que pensaria quem não conhece o jogo de tênis se visse, a certa alguma de uma partida, um dos jogadores segurar duas bolinhas amarelas e levantá-las, mostrando-as ao adversário. Que quer dizer isso? Que ele agora vai usar bolinhas? Mas eles vinham jogando com bolinhas até ali! Que vai usar agora bolinhas amarelas? Mas as bolinhas com que vinham jogando eram amarelas. Mistério! Subamos alguns degraus. Alberto Einstein ensinou-nos que E=Mc2. No mundo todo há certamente pessoas que sabem o que isso significa e a relevância disso para a ciência e para o mundo. Eu, no entanto, não tenho a menor idéia daquilo que está por trás dessa famosa fórmula. Você é capaz de me explicar o que se contém nela? Cartas para o autor.
Eu poderia subir alguns muitos degraus e tentar mostrar se acredito num Deus pessoal ou num Deus cósmico. Mas, e daí? “Tanto faz como tanto fez” dirá o leitor. “Não estou nem aí”, dirão outros. Note que essa frase é empregada por muitos também quando falamos em eleição de governantes. Pensar dói.A questão, como diz Küng, não está em discutir conceitos. Qualquer um de nós afirmaria o que ele afirmou em seu livro Por que ainda ser cristão hoje?, de que me vali para estas reflexões: “Não deixo absolutamente de reconhecer o fracasso histórico do cristianismo”. Nem por isso ele deixa de propor que continuemos a cristianizar a sociedade em que vivemos.
O desafio é: será possível salvar o nosso planeta sem fazermos da religião algo mais concreto, mais“terreno”, algo menos preocupado com conceitos e mais comprometido com ações tendentes a fazer imporem-se aqueles valores que nossa inteligência, limitada que seja, concorda serem atributos desse Criador de tudo? O também perseguido frei Leonardo Boff segue esse mesmo caminho, tanto que escreveu um livro chamado Ecologia - Grito da Terra, Grito dos Pobres. Será possível escolhermos governantes que pensem menos em si e mais no serviço que os aguarda, no respeito à dignidade humana, na luta contra todo tipo de opressão, num projeto de um Poder Judiciário minimamente eficiente, em programas que estimulem a solidariedade e a cidadania?Eu creio que sim. Se meu testemunho vale alguma coisa, eu posso dizer: por incrível que possa parecer, isso tudo já foi pior do que é hoje. Não é de hoje que político furta, nem é de hoje que muito juiz merece algema e xadrez. E se alguma coisa melhorou, é porque pessoas não ficaram reclamando na escuridão porque a lâmpada se apagou. Elas preferiram acender um palito de fósforo.

Dr. Duralexsedlex

Amanhã vai ser outro dia!

Bem-vindo, leitor: Tenho algo a lhe dizer, nesse post.

Confesso que não sou nenhum santo, nenhum exemplo a ser seguido.

Confesso que por muitas vezes iludi, outras omiti, e mais outras tantas, confundi.

Mas não posso mentir dessa vez: por isso tenho algo a lhe dizer.

De todas as meia-verdades universais, de todas as crenças sociais idiossincraticamente estabelecidas, de tudo que se repete à exaustão, simplesmente por ser assim que as coisas são, dessa vez é diferente.

Eu tenho algo pra lhe dizer, e já lhe aviso, você sabe o que é e nem imagina o que seja!

Veja bem, se muitas vezes eu enganei foi por que também fui enganado.

Quis ensinar sem saber que o que eu sabia não condizia com o que eu sabia que sabia, mas não queria saber.

Confesso que se enganei, não foi por mal. Mas não é exatamente disso que dizem do inferno?

Não estou lhe revelando a verdade nesse momento pensando em me purgar dos antigos pecados, ou mudar algo, nem em âmbito pessoal nem social.

Revelo cordialmente o que sei, simplesmente por que sei que esse é o único ato que eu ainda posso cometer, sem ser passivo de punição no futuro.

Explico: o que me move no momento não é certeza. É mais que isso.

É verdade.

Juro.


Líber

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Cadeira vazia.

“Jamais ame alguém! Jamais ame alguém!Ó inúteis seres de barro,as alegres grinaldas da esperança são feitas de flores efêmeras,coisas destinadas a esmaecer e morrere que florescem por apenas insignificantes horas.”



A escola ficava na Bigdoy Allé, rodeada das residências dos embaixadores estrangeiros, que talvez preferissem a calma de Bergen e seus fjords à agitação de Oslo e a invasão dos estrangeiros que tanto descaracterizavam o aspecto da capital. As crianças passavam todos os dias junto ao muro da casa grande, onde tremulava a bandeira colorida, que despertava a atenção daquele bando de gralhas, grossitando todas ao mesmo tempo. Stars and stripes forever, como se dizia além do oceano, lá onde Leif Ericson estivera muito antes de ali chegar Cristóbal Colón.Na classe não lhes haviam advertido que além daquele muro era território estrangeiro, pois não lhes ensinavam ainda essas coisas de direito internacional e outras bobagens que os adultos inventam para criar barreiras entre si. Sabiam apenas que as árvores em seu país não tinham dono, pois o allemannsretter (1) assegura a todos poder entrar no terreno alheio e colher o que a natureza ali plantasse. Res nullius, res omnium, diriam elas, se soubessem aquela língua estranha que jamais haviam ouvido alguém falar por ali. E da qual ninguém necessitava para ser feliz.Naquele dia, na classe, a colega morena exibira ao menino loiro um sorriso diferente daquele que costumava entregar aos outros colegas, sempre gentil e tímida. Era preciso retribuir-lhe a especial atenção. Mas como?Ali estava agora a oportunidade de mostrar sua valentia, andando sobre o muro alto da casa grande, à maneira de um nefelibata, palavra que ele jamais ouvira na vida. E jamais ouviria.Sob os olhos espantados das demais gralhas, o menino atravessou a rua, veio correndo e conseguiu, com salto felino, alcançar o cimo do muro pretendido. Com algum esforço pôs-se de pé lá em cima, abriu os braços em cruz e digeriu gostosamente o aplauso dos colegas. E, mais do que aplauso, o sorriso especial da menina morena.E o sorriso foi o estimulante que o fez caminhar, lentamente, o estreito caminho que escolhera para mostrar à menina que era, de todos aqueles machos, a gralha que a natureza havia reservado para ela. Que ainda não havia visto toda sua valentia, pois tinha ainda de alcançar o cetro comprobatório de seu triunfo. Saltar do muro para dentro do terreno, colher frutas silvestres e, supino esfoço!, com o troféu na mão, galgar de novo o muro, trazendo à rainha o butim de sua pilhagem, viking romântico.A vida, porém, é feita de surpresas, aprendeu ele, ao perder o equilíbrio e cair do lado de lá do muro, despertando um oh! dos colegas e um ar de preocupação no rosto da menina morena.Do outro lado do muro, o receio dos adultos diante de questiúnculas que vinham ocorrendo além, muito além daquelas terras geladas e que poderiam vir a molestá-los algum próximo dia, fê-los cercarem-se de cuidados desdobrados. E aquilo que se mostrava bosque era, na verdade, um campo minado, preparado para o pior.O fato é que as gralhas não souberam explicar aos policiais chamados, falando todas ao mesmo tempo, se o grito veio antes ou depois da explosão. O menino loiro, única pessoa autorizada pelas circunstâncias a esclarecê-lo, jamais poderá fazê-lo. E isso era o que importava.E a menina morena ficou sem as frutas silvestres, substituídas por uma dor profunda que lhe agulha o peito sempre que vê, na classe, aquela cadeira vazia.

Dr. Duralexsedlex

Narizinho Norueguês

Como pude verificar mais tarde, o sanduíche é uma instituição nacional. No ônibus, no bonde, no metrô, no barco, na rua, na ante-sala dos cinemas, no páteo da universidade, nos jardins é comum eles abrirem sua skulder veske (uma bolsa que carregam nas costas, outra instituição nacional, que os transforma numa espécie de marsupiais, e que, além do lado prático, talvez explique a inexistência de senhoras nem senhores corcundas, já que a espinha, na infância e na juventude, vai-se cristalizando em linha reta) e dali retirarem as coisas mais inimagináveis, em especial um embrulho contendo o matpakke, um sanduíche que pode ter os mais variados recheios, em especial o delicioso camarão local cozido.Os restaurantes, claro, fazem concessão ao turista e lhes exibem as refeições completas a qualquer hora do dia. Em especial as universais pizzas, que os jovens compram por fatia e saem comendo pela rua, sem a menor preocupação.Nos restaurantes quase não se come carne vermelha, cujos preços são proibitivos. Além da carne de alce, há carne bovina, importada adivinha de que país? O café vem da Colômbia, a banana vem da África mas a carne bovina vem do Brasil. Em compensação, há mil tipos de pão, nenhum deles o pão fresco, que tanto me empanturra o estômago e foi proibido por meu médico. Ponto para eles.E há os doces. E os queijos, que, certamente, serão minha perdição(pois disso tenho certeza, literalmente padecerei, aos que me conhecem sabem o que estou dizendo). Adeus regime!Finda a refeição, servem-me um café. Em lugar do corto, como se bebe na Itália, eles o tomam em uma caneca que mais seria apropriada a uma chocolatada quente. E a economia de pó é visível até na cor da bebida, cujo sabor lembra, remotamente, um chá de rubiácea.No parque, lá estavam algumas vovozinhas saboreando seu matpakke. O que, mais que depressa, fiz registrar ad perpetuam rei memoriam, tanto quanto as mais de duzentas esculturas do meu colega Vigeland.Paga a conta, circulamos pelo belo parque, onde o famoso foetus não poderia deixar de ser registrado. Não conheço outro artista que tivesse tido a idéia de registrar esse momento de nossa vida. Depois de uma boa caminhada, seguimos para o hotel, onde as pessoas sempre me recebem com um sorriso que me faz sentir um marajá. Estão todos certos de minha generosidade na hora da gorjeta, por certo. Ele mais uma vez me corrige: Essa cordialidade você vai encontrar em todo lugar aqui, mesmo por parte de pessoas desconhecidas. Mais tarde conferi que, nos ônibus, o motorista não tem a menor dúvida em abrir um mapa para indicar a um passageiro onde fica o lugar procurado, por onde não passa aquele veículo, que o passageiro havia tomado por engano.A belíssima atendente do hotel me pergunta se quero aproveitar o sol da tarde para um banho na piscina. Aquecida e coberta?, indago ingenuamente. A moça positivamente jamais ouvira tal pergunta. E meu guia me informa que, com tal temperatura (eu estava vestindo casaco) é comum os noruegueses nadarem no mar. Aquele sol de fim de verão é coisa rara por aqui e é preciso aproveitá-lo. Rejeito delicadamente o convite, despeço-me de meu guia e sigo para o quarto, para um merecido repouso, que os dias próximos serão de muito trabalho, pois tenho de estudar a programação do congresso.Antes de fechar a porta, porém, acho adequado fazer-lhe uns esclarecimentos. Não pretendo ser um desses turistas deslumbrados, como há muitos. Os melhores restaurantes, os hotéis mais confortáveis, os recantos mais visitáveis. Tudo isso também me atrai, é claro. Gosto de conhecer locais bonitos, de comer calmamente e, se possível em boa companhia, uma boa refeição, tomando uma boa bebida, e também prefiro hospedar-me num hotel de qualidade, em lugar de ficar numa espelunca. Ser turista não quer dizer ser perdulário, mas também não pode significar viver miseravelmente, assim penso eu. A sempre oportuna virtus in medio cai bem nesse momento. Got it?Entretanto, minhas observações sobre a Noruega não serão, certamente, as de um simples turista. Espero que sejam mais amplas, com um toque pessoal que eu não poderei evitar. Talvez até vire um livro. Ou vários, diz ele. Veremos.À medida que for me aclimatando no país, começarei a fazer alguns amigos noruegueses, a quem, certamente farei observações que lhes causarão espanto. Sobre o narizinho das moças, por exemplo. Já viram nariz mais bonito do que o das norueguesas? indagarei. Não, eles nunca repararam nisso. Convivendo com elas no dia-a-dia, eles certamente não percebem a graça daquele nariz arrebitado, porque, ilhados em seu país, não têm parâmetro para comparar. Sugerir-lhes-ei, então, que visitem o museu Kon Tiki e comparem o nariz delas com aquele das estátuas de pedra que lá estão, trazidas da Ilha de Páscoa pelo extraordinário navegador Thor Heyerdahl. E se darão conta da beleza das moças nativas. Aliás, Kon Tiki era o nome de uma balsa construída como uma cópia de um barco pré-histórico. Feita com nove troncos de madeira leve e uma tripulação de apenas seis pessoas, partiu em 28 de abril de 1947 de Callao, no Peru, chegando à Polinésia depois de 100 dias. Tudo está devidamente documentado e exibido naquele museu.E assim ficou a idéia de que um estrangeiro poderia registrar sua opinião sobre pessoas, coisas e costumes locais, enquanto aguardo o tal congresso de escritores.Não me move o propósito de fazer um simples registro, digo-lhe desde já. Como dizia o Fernando Pessoa, por um de seus heterônomos, o poeta (e todo artista) é um fingidor, que finge tão completamente que até finge que é amor o amor que deveras sente. Ou seja, o leitor, o apreciador de qualquer obra de arte, não saberá jamais onde está a reprodução da realidade e onde está a contribuição pessoal do artista.Atrevo-me a dizer que todo artista é um inconformado com a obra do Criador. O que Deus fez foi muito pouco. É preciso acrescentar algo a ela. Pendurar um quadro numa parede de uma casa ou plantar uma escultura numa praça pública não é isso? Com o escritor acontece o mesmo. Até onde o historiador é alguém neutro nas descrições que faz? Um ponto de vista é sempre uma visão a partir de um ponto. E esse ponto é o olhar de quem vê. Ao escrever, utilizo-me da realidade, acrescentando-lhe, porém, algo que me parece cabível. Ou crio eu mesmo essa realidade, que, pelo fato de existir apenas na imaginação do autor, não deixa de ser realidade.Ou você acreditou que alguém iria me convidar para um congresso de escritores?

Dr. duralexsedlex

Morreu.

Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me."
Mat 19,21




Andou só por andar, como se fosse autômato; num banco de jardim, permaneceu estático. Pensar, já não pensava. O pensamento, errático, voava, além de si, como de um ser sonâmbulo, que traz atrás de si como visões oníricas. Chorou gotas de dor tendo um sabor insípido; co’a manga da camisa recolheu as lágrimas; sentiu dentro de si um mal-estar famélico; a cara transmudou-se num rostinho angélico e foi pro barracão, pra tapear as vísceras. Sonhou matar a fome, então, nuns seios túrgidos. No catre remendado ele se achou um príncipe:por manto de arminho ele vestiu a túnica, que fora do seu pai, quando servira o exército, morrera e lhe deixara como herança única. Buzinas na avenida ressoaram lúgubres:do sonho não voltou porque morrera eufórico;no rosto inda se via um como riso cínico,no gesto inda se via uma postura cívica.Viveu só por viver, como se fosse autômato. Sonhou sonhos de cor, tendo visões angélicas; no catre remendado o pensamento errático voava além si, pra tapear as vísceras. Pensar já não pensava, pois morrera eufórico.Morreu como viveu: permaneceu estático.Num banco de jardim ele se achara um príncipe.Passara pela vida como fosse sândalo:aos golpes da miséria sucumbira impávido Morreu só por morrer: como se fosse errático.

Dr. Duralexsedlex

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Herói Adormecido

"Sei que meu trabalho é apenas uma gota d'água num oceano, mas sem ele o oceano seria menor." Madre Teresa de Calcutá


Joseph Campbell brindou-nos com notável reflexão a respeito da saga do herói, esse repositório de virtudes que, ao longo da História, preenche narrativas que passam de geração a geração. A figura arquetípica de que fala Jung. Aquele modelo de ser humano que, superando as limitações humanas, dá à sua (e à nossa) existência um sentido cuja dimensão nem sempre percebemos. Para Campbell, o tecnicismo da sociedade contemporânea conduz as pessoas ao tédio e à alienação, incapazes de assumir o herói que cada um traz dentro de si, envolto por um ambiente de competição que a todos nos massacra. O heroísmo, assim, passa a ser entendido como o esforço para a vivência da vida em sua plenitude, como assunção de sua história pessoal exclusiva e única, vivida com intensidade. Quem se habilita?
Deixando de lado o aspecto religioso (não por ser menor, mas por suscitar discussões que aqui não cabem), será fácil invocar as figuras heróicas de Moisés, de Jesus, de Maomé ou do Buda, vendo-se neles apenas suas qualidades, como é próprio de todo herói autêntico. Heróis que não chegaram aonde chegaram graças a poderes especiais, mas em razão de um caminho extremamente espinhoso. Per aspera ad astra, como se dizia outrora. E é justamente o inatingível desses personagens (cuja historicidade também não importa, pois eles sempre serão maiores do que a História) que nos afasta, não poucas vezes, da chamada religião, pois as figuras desses heróis passam a se tornar como que propriedade de grupos humanos que, no limite, cometem atrocidades em nome de quem representaria a elevação máxima do ser humano. Despreza-se o fato mais importante, que é o substrato do herói, que o torna superior a qualquer nome que se lhe dê. A profundidade da mensagem mitológica passa então a ser substituída por narrativas pretensamente históricas. Meros contos de fadas, até porque, como nos ensina Jung, quando dizemos "Deus", estamos apenas enunciando uma palavra, não um conceito. O máximo a que conseguimos chegar é à imagem de uma figura antropomorfa. Como dizia o filósofo grego, se os cavalos soubessem pintar, pintariam Deus com cabeça de cavalo. Os hinduístas que o digam.
O que nos encanta nas narrativas dos feitos desses heróis é, de certa forma, uma projeção especular, se me permitem o pernosticismo: vemos o herói como quem se vê num espelho. Sua saga é, no geral, um morrer e um renascer dentro da mesma vida, a nos convidar a superar as dificuldades que nossas limitações humanas nos impõem diuturnamente. A vida, rigorosamente, alimenta-se da vida, o que o sacramento da eucaristia ilustra perfeitamente.
O cinema, é ainda Campbell quem faz o reparo, trabalha desde sempre com essas figuras arquetípicas. A quantas pessoas ocorrerá que o vilão de Guerra nas Estrelas chama-se Darth Vader (corruptela de Dark Father), para expressar o anti-herói, o Pai Sombrio que o filho Skywalker (textualmente, "caminhante do céu") tenta resgatar na hora da morte (do pai)? A força interior do filho naquela narrativa mitológica não lhe é dada de graça, sendo, antes, fruto de longo caminho de aprendizado e superação de obstáculos, muitos dos quais ligados à sua condição de ser humano, até convencer-se de que "eu tenho a força", como poderia ser "eu tenho a fé". Os jesuítas não fazem exercícios espirituais?
Quando o nome do filme Shane, de George Stevens, foi traduzido para o português como Os Brutos também amam, tudo o que podemos concluir é que o tradutor não tinha o mais remoto conhecimento de psicologia nem de mitologia. A figura do homem sem passado nem futuro, que assume, com desassombro, o papel de justiceiro, de enviado dos deuses, não diz com um homem real, mas com aquele herói que todos temos dentro de nós e que, por motivos os mais variados, nem sempre vem à tona. Não nos esquecendo de que o filme narra a história tal como é vista por um garoto, não sendo demasia concluir que o heroísmo de Shane seria mera projeção do heroísmo que o garoto esperava do pai, essa figura mítica de que todos necessitamos para desenvolvermos uma personalidade tão sadia quanto possível.
Infelizmente, os resumos dos jornais e das revistas mostram-se, no geral, incapazes de apreender a grande mensagem trazida por muitos filmes, como esse maravilhoso O Último Samurai, em que o próprio título é propositadamente ambíguo. Quem é o capitão Nathan Algren? É um ser humano chegado à mais insuportável degradação, que se prostitui para sobreviver e se embriaga para suportar uma vida insuportável. Algo que Aurélio Agostinho conheceu muito bem.
Como todo herói mítico, o capitão Nathan tem sua Estrada de Damasco, onde as Parcas lhe poupam a vida, para dar-lhe a oportunidade de dar a ela um sentido condizente com sua condição de herói, tanto quanto Aurélio Agostinho, que veio a tornar-se bispo de Hipona e doutor da Igreja católica.
Quem poderá deixar de lembrar-se também do inesquecível Augusto Matraga, de nosso Guimarães Rosa?
Não estivéssemos diante de figuras arquetípicas e até se poderia pensar num plágio. Matraga, como Nathan, cometera toda sorte de atrocidades em sua vida pretérita de cangaceiro. Emboscado pelo destino, é jogado em uma ribanceira, dado como morto pelos desafetos. Ressuscita e dá à sua vida um sentido heróico, com o declarado propósito de entrar no céu, nem que tenha de arrombar suas portas a coice. "Cada um tem a sua hora, e há de chegar a minha vez!". E ela chega pelas mãos de Joãozinho Bem-Bem, vivido magistralmente no cinema por Jofre Soares.
Tanto Augusto Matraga como Nathan Algren (e como, certamente, qualquer um de nós) têm sua hora e vez (quantos comentadores, desatentos das sutilezas do grande escritor, colocam entre esses dois substantivos um inexistente a), aquele momento de conversão íntima, a partir da qual a vida passa a ter o seu real sentido.
Em suma: todos nós teremos sempre uma hora e vez, aquela oportunidade de nosso herói adormecido despertar e dizer a que veio.

Dr. Duralexsedlex